quinta-feira, 14 de julho de 2011

A Flor e a Náusea - Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Lírica contra a Sociedade - A Flor e a Náusea


        O poema de Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea, apresenta um eu lírico condenado, condicionado a contragosto, sua vivência não lhe agrada, não corresponde ao seu íntimo. Este eu lírico está num mundo que lhe imprime a impossibilidade do fazer poético; “A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade” (BOSI, 1977, p. 143). Esta condição deflagra a sensação de náusea, enjoo, nojo e o sentimento de ódio. Ele se encontra impotente, seu dizer poético não é valorizado por este mundo e esbarra nos muros de sua prisão: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos.”. Não é capaz de realizar sua poesia diante do mundo que o condiciona a uma vivência prosaica, sem a possibilidade de experiência poética diante das coisas: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase”.

           Este modo de vida tedioso causa o segundo elemento presente no título, a náusea. O “organismo” do eu-lírico rejeita esse modo de vida vulgar que torna os dias os mesmos, enfadonhos, prosaicos, sem oportunizar ao ser o desenvolvimento de sua humanidade, a poetização das coisas, a renovação do olhar sobre as coisas. Logo o “organismo” na tentativa de rejeitar e expelir este modo de vida, assim como o alimento que não agradando o estômago é repelido como vômito – gerado por um movimento anormal do sistema digestivo que causa a náusea e o enjoo –, acaba por sentir-se constantemente nauseado (Vomitar esse tédio sobre a cidade), pois ele nada pode fazer para mudar a condição das coisas como simples objetos de mercado e troca, objetos em estado estanque e trivial. No terceiro verso (Melancolias, mercadorias espreitam-me.) a palavra “mercadoria” está vinculada a um tipo de relação pautada no comércio, onde tudo tem valor de troca, e esta mercadoria, em consonância com “melancolias”, surge como guarda que o mantém na condição de prisioneiro que se encontra.
Os últimos três versos da quarta estrofe são uma introdução da quinta estrofe, eles tratam da condição de todos os homens, tal qual a do eu lírico, tornando-se seres sem liberdade e seguindo a cartilha dos jornais para o entendimento do mundo: “e soletram o mundo, sabendo que o perdem”. Na quinta estrofe há a descrição desta relação entre homem e mundo mediada pelos jornais. O ócio humano é ocupado pelas manchetes e crimes presentes nos periódicos, a abjeção a qual o sujeito é arrastado sem parar pela sociedade de consumo (BOSI, 1977, p. 153). Estas notícias alimentam o homem e enjoam e irritam o poeta: “Os ferozes padeiros do mal/ Os ferozes leiteiros do mal”. Além da náusea, há como consequência o sentimento de subversão, há o ódio (Por fogo em tudo, inclusive em mim) e rancor e ressentimento de sua vida de prisioneiro (Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido, sequer colocado./ Nenhuma carta escrita nem recebida.).
As três últimas estrofes são a revelação da flor e sua natureza contrária a toda a situação que oprime o eu lírico, ela rompe o asfalto e imprime no eu lírico o cessar da náusea e condição de prisioneiro. Esta flor é diferente das outras “Sua cor não se percebe/ Suas pétalas não se abrem/ Seu nome não está nos livros/ É feia. Mas é uma flor”. Tanto o mundo prosaico (asfalto) quanto as sensações e sentimentos produzidos por este mundo (nojo, tédio e ódio) são rompidos, extirpados: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Na estrutura do poema é possível inferir a flor como sendo o seguinte dístico: “Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se/ Pequenos ponto brancos movem-se no mar, galinhas em pânico”. Trazendo assim um tom humorístico ao poema – que se configurava até então num tom lírico universal (ADORNO, 1980, p. 194), ao tratar de um sentimento pessoal de modo a alcançar a condição humana na sociedade moderna e prosaica – a imagem de galinhas em pânico no mar é jocosa e inusitada, destoa de toda a reflexão poética apresentada, assim este dístico, esta flor feia, “fura” o próprio poema.
Podemos caracterizar o poema, de acordo com Bosi, como poesia de natureza pela utilização do símbolo da flor como redentora do homem, mas esta flor não é a natureza em si, simboliza as possibilidades da linguagem de reinventar o mundo, e torná-lo menos prosaico. E de acordo com Adorno: “Obras de arte, todavia, têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde”. Este poema é uma grande obra de arte ao expor o discurso vigente que manipula a recepção do homem sobre a realidade.