quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Da secura brotou humanidade

            A falta d’água no Brasil começou a representar um perigo para sobrevivência nacional. Talvez esta tragédia anunciada surta efeito no imaginário coletivo como o período que o Brasil afundou por falta d’água, então daremos mais valor as políticas socioambientais.
            Mas o imaginário coletivo no Brasil não é uno, somos um povo diversificado e dividido em grandes regiões, e mesmo dentro destas regiões há isolamentos culturais e de identidade. O que gera ignorância e alheamento dos problemas sociais fora de nossas fronteiras.
            Observamos com naturalidade o sofrimento alheio e brincadeiras com a inversão de papeis. O Sudeste na seca e o Nordeste superando suas adversidades climáticas. Brincamos para não chorar, mas não brincamos atoa, não permitimos qualquer brincadeira. Brincamos com o que convêm, e o sentimento de rivalidade e revanchismo convêm a toda população nortista e nordestina.
            O imaginário coletivo não vê o povo brasileiro sofrendo, mas sim os “esnobes paulistas”. O sofrimento deles é um castigo a sua arrogância. Esperávamos algo assim para que aflorasse este nosso rancor semeado por anos e regado pela atitude de esquecimento e isolamento entre as regiões. A nossa flor desabrochou e é uma bela raflésia.
            Não podemos ser ingênuos e estender a mão esquecendo as décadas de ignorância dos nossos problemas sociais por parte das outras regiões que dominam o cenário político nacional. Entretanto devemos lembrar que ainda boa parte do Brasil passa fome e sede. A luta não é por regiões, mas pelos brasileiros mais necessitados que em todas as regiões são esquecidos. Não são os paulistanos ricos que sentem sede, mas as populações simples e assalariadas, assim como no nordeste não é o fazendeiro, nem seu gado, que passam sede e fome, mas o Severino.

            O nosso alheamento do outro nos faz esquecer que não são todos que sofrem com as calamidades, há uma parcela mínima que é dona do país que estabelece os limites de seu poder, dividindo e demarcando o gado. E o gado não pode se misturar, cada um cuide de sua terra, e de seus problemas, se existir competição melhor. Vamos ver quem vencerá, quem será o melhor gado, o mais inteligente, forte, bonito e humano.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Nota sobre um Poema de Eleazar Venancio Carrias


Metafísicos_1

Quando eu vagava
Alta madrugada
Nas ruas de Berlim,
Nenhuma metafísica
Se eriçava
Contra mim.

Toda dúvida se diluía
Em meia garrafa de vodka.
Seguir a calçada de pedra
era a única lógica.
(blog: Coração Pervasivo)

O poema “Metafísicos_1” de Eleazar Venancio Carrias – publicado em seu blog “Coração Pervasivo” em 25 de Abril de 2011 – possui duas estrofes: uma sextilha e um quarteto. É um poema breve de versos curtos. Contudo, sua organicidade alcança a plenitude do estado de entendimento deflagrado pela embriaguez.
Berlim é o lugar escolhido para o eu lírico bêbado passear, local de referência na história e capital de um dos polos de desenvolvimento da filosofia e cultura ocidental. Lugar carregado de passado grave à historia do pensamento (Kant; Benjamin; Heidegger;...), entretanto este passado não pesa nos ombros do eu lírico entorpecido (Nenhuma metafísica/ se eriçava/ contra mim.)
Constituição intima das coisas...”/“Sentido íntimo do universo...”; Este estado de perplexidade ridicularizado por Alberto Caeiro não o atormenta. Estar bêbado é o melhor modo de entender o mundo; estando débil e ridículo ao cambalear pelas ruas, sendo a única preocupação manter-se na calçada. Este estado responde as perguntas da metafísica, pois a lógica está no que é de mais superficial e simples (seguir a calçada de pedra).
Contudo este poema curto não é superficial, mesmo sendo simples; nem tão óbvio. Sua linguagem é a do cotidiano; sem metáforas surrealistas ou jogos barrocos de raciocínio e reflexão. O poema, assim como praticamente toda poesia de Venâncio, não se baseia nestes recursos, ele é rico em reflexões imagéticas. O contraste entre a preocupação rigorosa e grave sobre o caminho da humanidade exercida pela filosofia e a preocupação tola de um débil bêbado em seguir seu caminho pela calçada.
       Poema curto que dialoga com Alberto Caeiro em “O Guardador de Rebanhos”, no qual os questionamentos metafísicos não revelam o mundo, mas o distorce e cega o homem diante do mais importante: “Quem está ao sol e fecha os olhos, / Começa a não saber o que é o sol, / E ao pensar muitas coisas cheias de calor”.
        O ponto chave neste poema é o alcance da lucidez pelo poeta ao ignorar o questionamento sobre o homem e o mundo. O poeta está lúcido ao se entorpecer pela vida preocupando-se em realizar o que é mais cotidiano, manter-se em pé e caminhar em linha reta, talvez tentando manter alguma dignidade pelo caminho. Ele, diante das questões filosóficas, as ignora na sua embriaguez.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A Flor e a Náusea - Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.

O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
Ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

Lírica contra a Sociedade - A Flor e a Náusea


        O poema de Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea, apresenta um eu lírico condenado, condicionado a contragosto, sua vivência não lhe agrada, não corresponde ao seu íntimo. Este eu lírico está num mundo que lhe imprime a impossibilidade do fazer poético; “A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade” (BOSI, 1977, p. 143). Esta condição deflagra a sensação de náusea, enjoo, nojo e o sentimento de ódio. Ele se encontra impotente, seu dizer poético não é valorizado por este mundo e esbarra nos muros de sua prisão: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos.”. Não é capaz de realizar sua poesia diante do mundo que o condiciona a uma vivência prosaica, sem a possibilidade de experiência poética diante das coisas: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase”.

           Este modo de vida tedioso causa o segundo elemento presente no título, a náusea. O “organismo” do eu-lírico rejeita esse modo de vida vulgar que torna os dias os mesmos, enfadonhos, prosaicos, sem oportunizar ao ser o desenvolvimento de sua humanidade, a poetização das coisas, a renovação do olhar sobre as coisas. Logo o “organismo” na tentativa de rejeitar e expelir este modo de vida, assim como o alimento que não agradando o estômago é repelido como vômito – gerado por um movimento anormal do sistema digestivo que causa a náusea e o enjoo –, acaba por sentir-se constantemente nauseado (Vomitar esse tédio sobre a cidade), pois ele nada pode fazer para mudar a condição das coisas como simples objetos de mercado e troca, objetos em estado estanque e trivial. No terceiro verso (Melancolias, mercadorias espreitam-me.) a palavra “mercadoria” está vinculada a um tipo de relação pautada no comércio, onde tudo tem valor de troca, e esta mercadoria, em consonância com “melancolias”, surge como guarda que o mantém na condição de prisioneiro que se encontra.
Os últimos três versos da quarta estrofe são uma introdução da quinta estrofe, eles tratam da condição de todos os homens, tal qual a do eu lírico, tornando-se seres sem liberdade e seguindo a cartilha dos jornais para o entendimento do mundo: “e soletram o mundo, sabendo que o perdem”. Na quinta estrofe há a descrição desta relação entre homem e mundo mediada pelos jornais. O ócio humano é ocupado pelas manchetes e crimes presentes nos periódicos, a abjeção a qual o sujeito é arrastado sem parar pela sociedade de consumo (BOSI, 1977, p. 153). Estas notícias alimentam o homem e enjoam e irritam o poeta: “Os ferozes padeiros do mal/ Os ferozes leiteiros do mal”. Além da náusea, há como consequência o sentimento de subversão, há o ódio (Por fogo em tudo, inclusive em mim) e rancor e ressentimento de sua vida de prisioneiro (Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido, sequer colocado./ Nenhuma carta escrita nem recebida.).
As três últimas estrofes são a revelação da flor e sua natureza contrária a toda a situação que oprime o eu lírico, ela rompe o asfalto e imprime no eu lírico o cessar da náusea e condição de prisioneiro. Esta flor é diferente das outras “Sua cor não se percebe/ Suas pétalas não se abrem/ Seu nome não está nos livros/ É feia. Mas é uma flor”. Tanto o mundo prosaico (asfalto) quanto as sensações e sentimentos produzidos por este mundo (nojo, tédio e ódio) são rompidos, extirpados: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Na estrutura do poema é possível inferir a flor como sendo o seguinte dístico: “Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se/ Pequenos ponto brancos movem-se no mar, galinhas em pânico”. Trazendo assim um tom humorístico ao poema – que se configurava até então num tom lírico universal (ADORNO, 1980, p. 194), ao tratar de um sentimento pessoal de modo a alcançar a condição humana na sociedade moderna e prosaica – a imagem de galinhas em pânico no mar é jocosa e inusitada, destoa de toda a reflexão poética apresentada, assim este dístico, esta flor feia, “fura” o próprio poema.
Podemos caracterizar o poema, de acordo com Bosi, como poesia de natureza pela utilização do símbolo da flor como redentora do homem, mas esta flor não é a natureza em si, simboliza as possibilidades da linguagem de reinventar o mundo, e torná-lo menos prosaico. E de acordo com Adorno: “Obras de arte, todavia, têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde”. Este poema é uma grande obra de arte ao expor o discurso vigente que manipula a recepção do homem sobre a realidade.