quinta-feira, 14 de julho de 2011

Lírica contra a Sociedade - A Flor e a Náusea


        O poema de Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea, apresenta um eu lírico condenado, condicionado a contragosto, sua vivência não lhe agrada, não corresponde ao seu íntimo. Este eu lírico está num mundo que lhe imprime a impossibilidade do fazer poético; “A poesia há muito que não consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da sociedade” (BOSI, 1977, p. 143). Esta condição deflagra a sensação de náusea, enjoo, nojo e o sentimento de ódio. Ele se encontra impotente, seu dizer poético não é valorizado por este mundo e esbarra nos muros de sua prisão: “Em vão me tento explicar, os muros são surdos.”. Não é capaz de realizar sua poesia diante do mundo que o condiciona a uma vivência prosaica, sem a possibilidade de experiência poética diante das coisas: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase”.

           Este modo de vida tedioso causa o segundo elemento presente no título, a náusea. O “organismo” do eu-lírico rejeita esse modo de vida vulgar que torna os dias os mesmos, enfadonhos, prosaicos, sem oportunizar ao ser o desenvolvimento de sua humanidade, a poetização das coisas, a renovação do olhar sobre as coisas. Logo o “organismo” na tentativa de rejeitar e expelir este modo de vida, assim como o alimento que não agradando o estômago é repelido como vômito – gerado por um movimento anormal do sistema digestivo que causa a náusea e o enjoo –, acaba por sentir-se constantemente nauseado (Vomitar esse tédio sobre a cidade), pois ele nada pode fazer para mudar a condição das coisas como simples objetos de mercado e troca, objetos em estado estanque e trivial. No terceiro verso (Melancolias, mercadorias espreitam-me.) a palavra “mercadoria” está vinculada a um tipo de relação pautada no comércio, onde tudo tem valor de troca, e esta mercadoria, em consonância com “melancolias”, surge como guarda que o mantém na condição de prisioneiro que se encontra.
Os últimos três versos da quarta estrofe são uma introdução da quinta estrofe, eles tratam da condição de todos os homens, tal qual a do eu lírico, tornando-se seres sem liberdade e seguindo a cartilha dos jornais para o entendimento do mundo: “e soletram o mundo, sabendo que o perdem”. Na quinta estrofe há a descrição desta relação entre homem e mundo mediada pelos jornais. O ócio humano é ocupado pelas manchetes e crimes presentes nos periódicos, a abjeção a qual o sujeito é arrastado sem parar pela sociedade de consumo (BOSI, 1977, p. 153). Estas notícias alimentam o homem e enjoam e irritam o poeta: “Os ferozes padeiros do mal/ Os ferozes leiteiros do mal”. Além da náusea, há como consequência o sentimento de subversão, há o ódio (Por fogo em tudo, inclusive em mim) e rancor e ressentimento de sua vida de prisioneiro (Quarenta anos e nenhum problema/ resolvido, sequer colocado./ Nenhuma carta escrita nem recebida.).
As três últimas estrofes são a revelação da flor e sua natureza contrária a toda a situação que oprime o eu lírico, ela rompe o asfalto e imprime no eu lírico o cessar da náusea e condição de prisioneiro. Esta flor é diferente das outras “Sua cor não se percebe/ Suas pétalas não se abrem/ Seu nome não está nos livros/ É feia. Mas é uma flor”. Tanto o mundo prosaico (asfalto) quanto as sensações e sentimentos produzidos por este mundo (nojo, tédio e ódio) são rompidos, extirpados: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. Na estrutura do poema é possível inferir a flor como sendo o seguinte dístico: “Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se/ Pequenos ponto brancos movem-se no mar, galinhas em pânico”. Trazendo assim um tom humorístico ao poema – que se configurava até então num tom lírico universal (ADORNO, 1980, p. 194), ao tratar de um sentimento pessoal de modo a alcançar a condição humana na sociedade moderna e prosaica – a imagem de galinhas em pânico no mar é jocosa e inusitada, destoa de toda a reflexão poética apresentada, assim este dístico, esta flor feia, “fura” o próprio poema.
Podemos caracterizar o poema, de acordo com Bosi, como poesia de natureza pela utilização do símbolo da flor como redentora do homem, mas esta flor não é a natureza em si, simboliza as possibilidades da linguagem de reinventar o mundo, e torná-lo menos prosaico. E de acordo com Adorno: “Obras de arte, todavia, têm sua grandeza unicamente em deixarem falar aquilo que a ideologia esconde”. Este poema é uma grande obra de arte ao expor o discurso vigente que manipula a recepção do homem sobre a realidade. 

3 comentários:

  1. Referencias:
    ADORNO, Theodor W. et al. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultura, 1980.
    ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião: 10 livros de poesia. 7. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
    BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paolo: Cultrix, 1977.

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  2. A nota interpretativa acima tem um ritmo simples e geral de um esclarecimento feito por um provérbio, porque se afasta, ao assumir a clarividência lírica de "A flor e a náusea", daquilo que possa parecer um demasiado pensar, dizendo coisas absurdas sobre a reflexão e o lirismo pertencentes ao referido poema. Por isso, esta interpretação, ao buscar demonstrar as ideias de "A flor e a náusea" sobre a condição de impossibilidade da experiência poética, sobre o constrangimento do eu-lírico por sensações e sentimentos hostis, realiza uma reflexão condensada e aberta, que, por não adicionar conceitos filosóficos à configuração do poema citado, põe-se, para ser julgada, em comparação com os versos.

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  3. É curioso ler pela primeira vez o texto de alguém que a gente conhece há muito tempo...sensação de descoberta...gostei como foste aos poucos interpretando o poema respeitando o ritmo dele, colocando as referências que serviram de fato pra clarear(e não complicar como às vezes fazem alguns acadêmicos), trazendo algo novo que eu como leiga desconheço. Mas o que mais gostei foi da parte que tu interpretaste a imagem das galinha em pânico como "a flor feia que fura o poema", um barato!

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